quarta-feira, 23 de abril de 2014

MARCELO COELHO: Selfies

Já não estou mais sozinho; o celular roubou minha privacidade; é meu segundo eu, é a minha consciência
Muita gente se irrita, e tem razão, com o uso indiscriminado dos celulares. Fossem só para falar, já seria ruim. Mas servem também para tirar fotografias, e com isso somos invadidos no Facebook com imagens de gatos subindo na cortina, focinhos de cachorro farejando a câmera, pratos de torresmo, brownie e feijoada.
Se depender do que vejo com meus filhos --dez e 12 anos--, o tempo dos "selfies" está de todo modo chegando ao fim. Eles já começam a achar ridícula a mania de tirar retratos de si mesmo em qualquer ocasião. Torna-se até um motivo de preconceito para com os colegas.
"Fulaninha? Tira fotos na frente do espelho." Hábito que pode ser compreensível, contudo. Imagino alguém dedicado a melhorar sua forma física, registrando seus progressos semanais. Ou apenas entregue, no início da adolescência, à descoberta de si mesmo.
A bobeira se revela em outras situações: é o caso de quem tira um "selfie" tendo ao fundo a torre Eiffel, ou (pior) ao lado de, sei lá, Tony Ramos ou Cauã Reymond.
Seria apenas o registro de algo importante que nos acontece --e tudo bem. O problema fica mais complicado se pensarmos no caso das fotos de comida. Em primeiro lugar, vejo em tudo isso uma espécie de degradação da experiência.
Ou seja, é como se aquilo que vivemos de fato --uma estadia em Paris, o jantar num restaurante-- não pudesse ser vivido e sentido como aquilo que é.
Se me entrego a tirar fotos de mim mesmo na viagem, em vez de simplesmente viajar, posso estar fugindo das minhas próprias sensações. Desdobro o meu "self" (cabe bem a palavra) em duas entidades distintas: aquela pessoa que está em Paris, e aquela que tira a foto de quem está em Paris.
Pode ser narcisismo, é claro. Mas o narcisismo não precisa viajar para lugar nenhum. A complicação não surge do sujeito, surge do objeto. O que me incomoda é a torre Eiffel; o que fazer com ela? O que fazer de minha relação com a torre Eiffel?
Poderia unir-me à paisagem, sentir como respiro diante daquela triunfal elevação de ferro e nuvem, deixar que meu olhar atravesse o seu duro rendilhado que fosforesce ao sol, fazer-me diminuir entre as quatro vigas curvas daquela catedral sem clero e sem paredes.
Perco tempo no centro imóvel desse mecanismo, que é como o ponteiro único de um relógio que tem seu mostrador na circunferência do horizonte. Grupos de turistas se fazem e desfazem, há ruídos e crianças.
Pego, entretanto, o meu celular: tiro uma foto de mim mesmo na torre Eiffel. O mundo se fechou no visor do aparelho. Não por acaso eu brinco, fazendo uma careta idiota; dou de costas para o monumento, mas estou na verdade dando as costas para a vida.
Não digo que quem tira a foto da cerveja deixe de tomá-la logo depois. Mas intervém aí um segundo aspecto desse "empobrecimento da experiência". Tomar cerveja não é o bastante. Preciso tirar foto da cerveja. Por quê?
Talvez porque nada exista de verdade, no mundo contemporâneo, se não for na forma de anúncio, de publicidade. Não estou apenas contando aos meus seguidores do Facebook que às 18h42 de sábado estava num bar tomando umas. Estou dizendo isso a mim mesmo. Afinal, os meus seguidores do Facebook, sei disso, não estão assim tão interessados no fato.
Não basta a sede, não basta o prazer, não basta a vontade de beber. Tenho de constituí-la como objeto publicitário. Preciso criar a mediação, a barreira, o intervalo entre o copo e a boca.
Vejam, pergunto a meus seguidores inexistentes, "não é sensacional?". Eis uma cerveja, a da foto, que nunca poderá ser tomada. A foto do celular imortaliza o banal, morrerá ela mesma em algum arquivo que apagarei logo depois.
Não importa; fiz meu anúncio ao mundo. Beber a cerveja continua sendo bom. Mas talvez nem seja tão bom assim, porque de alguma forma a realidade não me contenta.
A imagem engoliu minha experiência de beber; já não estou sozinho. Mesmo que ninguém me veja, o celular roubou minha privacidade; é o meu segundo eu, é a minha consciência, não posso andar sem ele, sabe mais do que nunca saberei, estará ligado quando eu morrer.
Talvez as coisas não sejam tão desesperadoras. Imagine-se que daqui a cem anos, depois de uma guerra atômica e de uma catástrofe climática que destruam o mundo civilizado, um pesquisador recupere os "selfies" e as fotos de batata frita.
"Como as pessoas eram felizes naquela época!" A alternativa seria dizer: "Como eram tontas!". Dependerá, por certo, dos humores do pesquisador.coelhofsp@uol.com.br
Folha, 23.04.2014

terça-feira, 15 de abril de 2014

Pesquisas veem lado bom da maldade

Característica negativa pode gerar resultado positivo
Por NATALIE ANGIER
Depois de passar décadas concentrados em características típicas do mau comportamento, como agressividade, egoísmo, narcisismo e cobiça, cientistas voltaram sua atenção para o tema mais sutil da maldade -o impulso de punir, ferir, humilhar ou constranger outra pessoa, mesmo quando nada se ganha e pode ser preciso pagar pelas consequências.
Psicólogos estão investigando a maldade como uma característica negativa, um lapso de conduta que deveria ser embaraçoso, mas que frequentemente é sublimado como virtuosismo.
Por sua vez, teóricos do evolucionismo estão estudando o que pode ser considerado o lado bom da maldade e seu possível papel na origem de características admiráveis como espírito de cooperação e senso de justiça.
A nova pesquisa transcende noções mais antigas de que somos basicamente selvagens brutos e egoístas, assim como sugestões mais recentes de que os humanos anseiam inerentemente por amor e laços. Em vez disso, a pesquisa conclui que o vício e a virtude podem estar estreitamente ligados.
No "Psychological Assessment", David K. Marcus, da Universidade Estadual de Washington, e seus colegas descreveram um estudo que elaboraram para avaliar diferenças individuais em relação à maldade, envolvendo 946 estudantes universitários e 297 adultos.
Os participantes disseram o quanto concordavam com sentimentos como "Se meu vizinho reclamasse da aparência do meu quintal, eu me sentiria tentado a deixá-lo ainda mais descuidado só para irritá-lo".
Os pesquisadores determinaram que os homens geralmente eram mais malévolos que as mulheres e que adultos jovens eram mais malévolos que os mais velhos.
Há muito tempo, teóricos do evolucionismo se debruçam sobre as origens e a finalidade da maldade, e um novo relatório sugere que, às vezes, a maldade pode gerar o bem. Patrick Forber, da Universidade Tufts, e Rory Smead, da Universidade Northeastern, ambas em Massachusetts, criaram um modelo computadorizado de jogadores virtuais que se desafiam em rodadas até o jogo decisivo. De acordo com as regras, o Jogador A decidia como um pote de dinheiro devia ser partilhado com o Jogador B. Se B concordasse com a divisão, ambos receberiam a porção combinada; se B recusasse a oferta, nenhum jogador receberia dinheiro.
Os competidores tinham de seguir uma de quatro estratégias. Estas incluíam desde a abordagem afável de "quando você é o Jogador A, você divide meio a meio, mas no papel do Jogador B você aceita qualquer oferta, por pior que seja", até a malévola "quando você é A, você faz uma oferta mesquinha, mas no papel de B você recusa uma oferta mesquinha". Os pesquisadores então deixaram os jogadores formarem grupos e ficaram surpresos com os resultados.
Embora grupos de jogadores extremamente malévolos ou egoístas tenham se desfeito rapidamente, e sociedades rigidamente justas fossem rapidamente desestabilizadas por influxos dos egoístas, os indivíduos flexíveis provaram não só que conseguiam conviver com os tipos malévolos, como a presença dos malévolos tinha o efeito de aumentar a taxa de trocas justas entre os afáveis. O doutor Smead disse que aparentemente a "integridade funciona como uma defesa contra a maldade".
Os resultados refletem outra pesquisa. Omar Tonsi Eldakar, da Universidade Nova Southeastern, na Flórida, estuda o elo entre comportamento cooperativo e punição egoísta.
Usando modelos da teoria dos jogos, ele demonstrou que quando jogadores egoístas, a fim de lucrar ao máximo, punem regularmente outros jogadores egoístas ou os excluem do grupo, o resultado líquido é um declínio geral de trocas egoístas, o que leva a um estado razoavelmente estável.
"É como a máfia", comparou ele. "Eles acabam reduzindo a criminalidade nas áreas em que moram.". Folha, 15.04.2014

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Racionamento de sexo: Em comunidade de Campinas, maridos agressivos ficam sem bilhar, futebol e... na seca

GIOVANNA BALOGH - DE SÃO PAULO
Nada de sexo, cerveja no bar nem partidas de bilhar ou futebol. Para grande parte dos homens, ficar sem apenas um desses itens já é uma verdadeira tortura. Em uma comunidade carente do bairro Jardim Columbia, em Campinas (a 99 km de SP), esse é um perigo constante.
Manter os companheiros "na seca" foi a saída encontrada pelas mulheres do local para puni-los por agressões físicas ou verbais.
A ideia foi reduzir os recorrentes casos de violência doméstica o que, segundo moradores, tem dado certo.
O chamado período de "disciplina", onde os homens são privados de sexo ou qualquer atividade de lazer, dura 15 dias e vale para todas as 200 famílias da comunidade que, por coincidência ou não, chama Menino Chorão.
A líder comunitária e cozinheira Maria do Carmo Pereira de Sousa, 44, diz que no bairro não existe o ditado "em briga de marido e mulher não se mete a colher". "Aqui todo mundo se mete e interfere."
Ela diz que a medida foi adotada há cerca de dois anos e só tem dado resultado porque são as próprias mulheres quem fiscalizam se o castigo está sendo cumprido.
"Se o meu companheiro está em disciplina e toma cerveja no bar com um amigo, a mulher dele vai puni-lo também deixando de fazer sexo com ele", diz Maria do Carmo, que faz reuniões quinzenais com as vizinhas para discutir os casos de agressão.
Ela, que é mais conhecida como Carmem, afirma que também foi vítima de violência doméstica quando vivia em Pernambuco com o pai dos seus sete filhos.
"Apanhei muitos anos sem saber o motivo. Muitas mulheres passam por isso diariamente e não sabem como se defender", diz a líder comunitária que vai contar hoje sobre essa experiência no "I Fórum sobre Violência contra a Mulher: Múltiplos Olhares", a partir das 9h na Unicamp.
Dono do único bar da comunidade, Ualas Conceição dos Santos, 24, diz que nunca agrediu a mulher, mas que vê muitos homens proibidos de frequentar seu estabelecimento. "Aqui quem manda são as mulheres. A disciplina' funciona e acho bom pois as mulheres têm sido muito maltratadas", afirma.
Na comunidade, é difícil achar um homem que fale abertamente que ficou de "castigo". O técnico em refrigeração, Michel Nascimento Barbosa, 23, aprova a "disciplina" e diz que já enfrentou as restrições de lazer e de sexo. "Foi ruim, mas elas estão certas", diz ele, comedido.
REINCIDÊNCIA
Em caso de reincidência, o agressor também pode apanhar. "Ele pode ser amarrado e a mulher bate nele na frente de todo mundo", diz.
Nos casos mais graves, o homem é expulso da comunidade. Segundo ela, já ocorreram quatro expulsões e as vítimas escolhem se desejam ficar no local ou ir embora com o agressor. "Infelizmente, algumas foram com eles."
A delegada Maria Cecília Favero Lopes, da Delegacia de Defesa do Direito da Mulher, desconhecia a justiça feita por conta própria das mulheres do Menino Chorão.
Segundo ela, a recomendação é que as vítimas de violência doméstica denunciem os casos e, se for necessário, solicitem medida protetiva prevista na Lei Maria da Penha. "O homem que for agredido pela mulher também deve procurar uma delegacia e relatar o caso", diz a delegada.
De acordo com dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública, em 2012, foram registrados 3.108 casos de lesão corporal dolosa na DDM de Campinas. No ano passado, foram 2.242 ocorrências. A pasta não divulgou, no entanto, os números deste ano.
De Atenas à África, iniciativa já levou ao fim de guerras
DE SÃO PAULO
A greve de sexo foi a saída encontrada pelas mulheres de Atenas para promover a paz, na comédia de "Lisístrata", do dramaturgo grego Aristófanes, em 411 A.C.
Em guerra contra os espartanos e cercadas pelos inimigos, as atenienses se negaram a fazer sexo com seus maridos enquanto a paz não fosse reestabelecida. Não deu outra, a greve acabou com a guerra.
A ativista liberiana Leymah Gbowe conseguiu fazer em seu país o que mostra a comédia grega. Em 2002, ela lançou a ideia da greve de sexo na Libéria enquanto a guerra civil que seu país enfrentava não chegasse ao fim.
Apelidada de "Guerreira da Paz", Leymah teve sucesso em sua iniciativa e o conflito na Libéria chegou ao fim um ano depois.
Em 2011, Leymah foi uma das três ganhadoras do Prêmio Nobel da Paz.
Folha, 09.04.2014